Reforma Agrária: TERRA para viver e trabalhar
“O PSAN/PE é uma prova de que é possível trabalhar as formas organizativas, de produção e comercialização, mesmo antes das famílias serem assentadas. Essa iniciativa tem possibilitado que muitas famílias não passem fome e tem alimentado a reforma agrária no Estado”.
“Não se pode falar em um país democrático quando a terra não está democratizada, quando não há possibilidade de existência e de respeito às diversas formas de vida no campo”. Essa é a avaliação do geógrafo e agente pastoral, que atua há 17 anos na Comissão Pastoral da Terra (CPT), José Plácido da Silva Júnior, sobre a questão da reforma agrária no Brasil e no estado de Pernambuco.
Nesta entrevista, ele fala a Assessoria de Comunicação (AssCom) da Cáritas Brasileira NE2 dos avanços e desafios na área, comenta sobre o papel dos movimentos sociais nesse contexto, faz um panorama sobre a realidade das condições de vida das famílias nos acampamentos. Além de trazer dados sobre a violência e os conflitos no campo e abordar a questão da produção de alimentos e a relação com a segurança alimentar e nutricional.
AssCom – Por que o Brasil, que é o segundo país do mundo em concentração de terras, ainda vive com tantos problemas no campo?
Plácido Júnior – O Brasil dos dias atuais possui uma estrutura agrária e agrícola herdada desde o período colonial. É justamente nesta estrutura baseada na concentração de terras – que mantém o poder e as terras nas mãos de poucos, no trabalho escravo e na monocultura para exportação – que está estruturada a questão fundiária brasileira. O Estado brasileiro foi construído e montado para manter essa estrutura. É uma estrutura de poder que se confronta com outras formas de estar e conceber o campo, as águas, as florestas. Esse confronto é o que chamamos de conflitos territoriais. Ou seja, o conflito é a disputa por quem controla o território. O capital, destruindo as matas, assoreando os rios, concentrando terras e utilizando trabalho análogo ao escravo, de um lado, ou os diversos povos do campo, do outro. É aí onde moram os conflitos que marcam a história do campo no Brasil. Não podemos resolver os problemas do país sem resolver estas questões. Não se pode falar em um país democrático, quando a terra não está democratizada, quando não há possibilidade de existência e de respeito às diversas formas de vida no campo.
AssCom – Como você analisa o processo de reforma agrária no Brasil?
Plácido Júnior – A nosso ver, nunca houve uma reforma agrária no Brasil. Apenas o que ocorre são poucas desapropriações de terras e de forma muito esporádica, muito aquém da realidade das milhares de famílias que encontram-se debaixo da lona preta há anos. Não se pode falar de reforma agrária se não houver desapropriação da terra, desconcentração, vontade de tornar justa a estrutura fundiária. O que vimos nos últimos 15 anos foi mais do que a manutenção da concentração de terras no país.
AssCom – Qual seria o modelo ideal de reforma agrária no país?
Plácido Júnior –Cremos que não há um modelo ideal de reforma agrária para o país. O Brasil tem contornos e proporções continentais, com povos muito diversos vivendo no campo. Mas é preciso ter alguns princípios para realização da reforma agrária: um deles deveria ser o limite da propriedade rural no Brasil. Hoje quem tem dinheiro pode comprar todas as terras do país. Não há limites para o latifúndio. Ele é violento por natureza. Também não podemos falar em reforma agrária sem falar nestes diversos povos do campo. Temos que ressignificar a reforma agrária, para que ela possa incorporar também os territórios das populações tradicionais, dos povos originários, dos pescadores e pescadoras tradicionais, dos fundos de pastos, entre tantos outros. Em outras palavras, não apenas dos sem terras e na criação de assentamentos.
AssCom – Que medidas seriam necessárias por parte do governo para colocar efetivamente em prática uma reforma agrária?
Plácido Júnior – Além de reconhecer e demarcar os territórios das populações tradicionais e dos povos originários, poderia começar destinando todas as terras improdutivas e devolutas públicas, que estão no cadastro de imóveis do INCRA, para a criação de assentamentos de famílias camponesas sem terra. De acordo com dados fornecidos pelo professor e geógrafo Ariovaldo Umbelino e pelo engenheiro agrônomo e especialista em Desenvolvimento Agrícola, Gerson Teixeira, existem cerca de 200 milhões de hectares de terras devolutas e algo entorno de 135 milhões de hectares de terras improdutivas. A destinação destas
terras para fins de reforma agrária seria um bom começo.
AssCom – Com relação aos movimentos sociais, qual o papel deles neste contexto
Plácido Júnior –Os movimentos sociais sempre cumpriram um papel importante em nossa história, para a garantia e conquistas de direitos. Uma vez que não há interesse do Estado brasileiro e do capital em realizar a reforma agrária, nem reconhecer e demarcar os territórios das populações tradicionais e dos povos originários, cabe às organizações do campo e aos movimentos sociais pressionar, exigir o que é de direito dos povos e dever do Estado. Precisamos depositar confiança nos movimentos sociais e provocar nossa sociedade para assumir esta pauta, que não é apenas do campo e sim de toda a sociedade.
AssCom – Que distinção você faz entre luta pela terra e luta pela reforma agrária?
Plácido Júnior – Dom Thomaz Balduíno, bispo emérito da CPT, já nos alertava: “Terra é mais que terra”. No Brasil, a luta pela terra tem sido muito mais ampla que as proposições de reforma agrária. A Reforma Agrária tem se resumido ao assentamento de famílias sem terra, o que é importante, mas não deve se resumir só a isso. A luta pela terra tem sido a luta pelo território dos povos que estão na terra e em seus territórios, mas que estão sendo ameaçados e expulsos pelos grandes projetos de desenvolvimento do capital e pelo próprio Estado. O território é a terra mais a significação do que está nela, é o jeito e o sentido de estar na terra. Penso que não devemos separar estes dois elementos, luta pela terra/território e luta pela reforma agrária. O que estamos falando é: quem deve estar no campo? Os camponeses, as populações tradicionais e os povos originários ou o agronegócio com suas corporações? É preciso buscar bandeiras que unifiquem a luta no campo sem esconder a diversidade do nosso povo.
AssCom – Segundo dados do INCRA e movimentos sociais, estima-se que existam aproximadamente 30 mil famílias distribuídas em acampamentos em Pernambuco. Em que condições se encontram essas famílias?
Plácido Júnior – Em governos anteriores foi criada uma medida provisória que proíbe as famílias sem terra adentrarem nas propriedades improdutivas, sob penalidade do Governo não vistoriá-las para fins de reforma agrária. As consequências desta medida provisória são as piores para as famílias sem terras. Como são impedidas de adentrarem nas propriedades, elas não podem produzir alimentos de forma ampla, não podem plantar para se alimentar enquanto segue o processo de desapropriação do imóvel pelo INCRA. A maioria das famílias fica confinada nas margens das rodovias e estradas, aguardando cestas básicas do Governo que chegam a cada três meses. São famílias que estão há 5, 10 anos debaixo das lonas pretas, mantendo a esperança da terra partilhada. Mas, muitas famílias acabam deixando a luta pela terra e vão engrossar as periferias das cidades ou as pontas de ruas, como as próprias famílias costumam chamar.
AssCom – Com relação à violência no campo, os conflitos estão aumentando, se reduzindo ou permanecem os mesmos?
Plácido Júnior – Os dados da CPT sobre os conflitos no campo para o ano de 2013 ainda estão em fase de conclusão e fechamento. Contudo, já podemos identificar que, em 2013, houve uma diminuição dos conflitos agrários, embora tenham aumentado, pelo menos nos últimos cinco anos, os conflitos com as populações tradicionais em todo o país. Associamos este aspecto à luta de resistência em defesa dos seus territórios tradicionalmente ocupados, contra o avanço dos grandes empreendimentos do capital, das grandes corporações e do próprio Estado brasileiro. Para se ter um exemplo do número parcial deassassinatos no campo em 2013, 50% está relacionado às vítimas que são povos indígenas.
AssCom – Hoje, como você avalia a atuação da CPT? Quantas famílias já estão assentadas, quantas ainda precisam de terra? Com relação à produção nos assentamentos, tem ideia de quantos já estão produzindo?
Plácido Júnior – A CPT trabalha com a quantidade de famílias que os movimentos do campo apresentam, ou seja, 30 mil famílias em Pernambuco. Esta é parte da demanda, pois, existem outras famílias sem terras que não entraram na luta ainda. Incluímos também os territórios das 109 comunidades quilombolas reconhecidas, os territórios dos povos originários do Estado, além dos territórios da pesca artesanal, com a luta pela criação da Reserva Extrativista de Rio Formoso e de Sirinhaém/Ipojuca. Com relação às áreas de assentamento, é preciso vê-las além da produção e do economicismo. Os assentamentos são os principais responsáveis pelo abastecimento das feiras locais e das próprias famílias assentadas. Essa produção tem a ver com a microeconomia, com a economia local, desde o assentamento até os municípios no seu entorno. A pergunta é: se essas famílias não estivessem assentadas onde estariam hoje? Estariam vivendo de quê? Comendo o quê? Como e onde estariam essas crianças e jovens? As famílias assentadas fazem o que nenhuma das grandes corporações e empresas do agronegócio faz: produzem alimentos, comida. Elas produzem também solidariedade, cultura, novas relações de gênero e de geração, propõem uma outra relação com a natureza.
AssCom – Dados do IBGE demonstram que 70% da produção de alimentos é realizada por camponeses. O que faz com que a agricultura familiar seja a grande responsável pela segurança alimentar da população brasileira. Com relação a tudo que é produzido nos assentamentos da reforma agrária, como você avalia essa produção? E as famílias têm espaço garantido para comercializar o que produz? Como funciona esse mercado?
Plácido Júnior – Imagine as famílias camponesas produzindo 70% do que comemos, estando apenas em menos de 30% das terrasocupadas pela agricultura e recebendo menos de 30% dos créditos destinados ao campo. Se houvesse uma inversão, se a produção de alimentos fosse priorizada e os camponeses ocupassem todas as terras destinadas à agricultura, e recebessem todos os créditos para o campo, hoje estaríamos discutindo nossa contribuição para acabar com a fome no mundo.
Acontece que a política agrícola brasileira segue a mesma lógica desde o período colonial. Priorizam-se a produção agroexportadora, as commodities para abastecer o mercado e gerar grandes lucros para as corporações e empresas do agrohidronegócio. Nesta lógica de mercado, não tem espaço para o campesinato. É preciso apostar na produção, no mercado, na lógica camponesa de produção, comercialização e de vida no campo. É preciso ocupar os centros urbanos com produtos saudáveis e manter uma relação solidária, de cumplicidade com os consumidores, de construção de um projeto para a sociedade.
Se uma mulher gestante tiver a oportunidade em escolher comer algo com veneno ou se alimentar com produtos saudáveis, tenho certeza que ela vai escolher a alimentação camponesa. Esta mulher não vai dar veneno para seu filho. Ela vai querer que seu filho ou filha cresça saudável. Percebe a relação direta com os centros urbanos? Estou falando de projeto de sociedade. Temos que politizar este debate.
AssCom – Em com os governos federal e estadual, movimentos sociais e a Cáritas, o PSAN/PE beneficiou 3 mil famílias acampadas e pré-assentadas. Como você avalia a atuação desse projeto neste cenário da reforma agrária?
Plácido Júnior – O PSAN tem sido de fundamental importância para as famílias beneficiadas, e temos acompanhado isso de perto. O projeto é uma prova que é possível trabalhar as formas organizativas, de produção e comercialização, mesmo antes das famílias serem assentadas. Esta iniciativa tem tirado muitas famílias da fome e alimentado a chama da reforma agrária.
Qual é a questão? É que este projeto não pode ficar pra sempre ou por 5 ou 10 anos. Ou seja, deve ser um projeto transitório e não definitivo. Não podemos perder o foco: a reforma agrária é um direito do povo brasileiro e um dever do Estado. Nossa energia tem que está voltada para isso. O projeto é importante, mas não pode tirar do nosso horizonte a democratização da terra. Terra vista como morada de todos nós e não como mercadoria.
por Kilma Ferreira | Assessora de Comunicação da Cáritas Brasileira Regional NE2
Foto: Bruno Spada |MDS e arquivo Cáritas NE2